Videolocadoras que ainda resistem em BH
Espaços que marcaram gerações sobrevivem na capital mineira com acervos raros, clientes fiéis e histórias que não cabem no algoritmo das plataformas digitais

Por Daniel Santos
A experiência de entrar em uma loja com aquele cheiro único que mistura plástico, papéis envelhecidos e memória, carimbar mais um título na ficha de locações, encontrar os amigos e passar horas entre prateleiras em busca de um clássico desejado ou do lançamento mais comentado do momento, tudo isso, somado às indicações preciosas dos donos, ficou para trás, para muitos, ainda na segunda década dos anos 2000. Hoje, entre cliques apressados e algoritmos que não inovam, a escolha de um filme dificilmente mantém o mesmo encanto.
Entretanto, em Belo Horizonte, algumas locadoras ainda resistem e mantêm viva uma tradição quase esquecida. Star Vídeo e ArtVídeo são dois dos últimos estabelecimentos com foco principal em locação de filmes da capital mineira, preservando um catálogo extenso, clientes fiéis e mais de 30 anos de história com VHS e DVDs.
O novo nunca intimidou
Randolfo Paiva, proprietário da Star Vídeo, localizada no bairro Coração de Jesus, é um amante do cinema que iniciou sua trajetória no aluguel de filmes em 1992, atuando como representante comercial de distribuidoras e abrindo sua primeira unidade. Ao longo dos anos, chegou a manter seis lojas em Divinópolis, no interior de Minas Gerais, além da unidade em Belo Horizonte. Atualmente, ao lado da esposa Flávia, uniu a locadora à loja de venda de DVDs comandada por ela, que se tornou referência entre colecionadores de diversas regiões e a principal responsável por manter o negócio de portas abertas até hoje, junto à sua paixão pelo cinema. “Quando abro essa loja, tenho a sensação de que estou no meu universo, no meu mundo”, orgulha-se.
Vencendo a batalha entre o físico e o virtual, Paiva nos conta que nunca se interessou pelos streamings e preferiu resistir com um comércio fiel às origens. Sem transformá-la em café, sorveteria ou qualquer outro tipo de negócio híbrido, ele se orgulha ao afirmar que sua locadora ainda resiste e continua imbatível frente aos meios online.
“No meu caso, como eu tenho um acervo muito bom, é muito raro alguém chegar aqui e perguntar de um filme que eu não tenho. Mesmo assim, quando perguntam, eu falo ‘olha, não saiu no DVD, mas se você quiser assistir um filme, eu consigo baixar para você, aí posso fazer uma locação’”, nos conta.
O acervo conta atualmente com cerca de 35 mil DVDs e 50 mil títulos dos mais variados gêneros e épocas, além de seu acervo pessoal com filmes raros que não irão para locação nem venda. Os clássicos seguem como os mais procurados, especialmente filmes das décadas de 1950, 60 e 70, além de obras de diretores consagrados que não estão disponíveis nas plataformas de streaming mais acessíveis, como Akira Kurosawa, cineasta japonês. Por isso, boa parte do público é formada por colecionadores, estudantes de cinema e senhores que não se adaptaram ao uso dos aplicativos.
Ao declarar seu amor pela sétima arte e refletir sobre o poder do cinema de transformar vidas, como aconteceu com a dele e a de sua esposa, Randolfo cumpre com entusiasmo o papel de locadorista e ainda deixa uma indicação:
“O cinema pode transformar vidas e, se a gente procurar, pode encontrar coisas boas. Ontem mesmo assisti a um filme muito legal, chamado A Noite do Triunfo (2020), sobre um cara que foi ensinar teatro dentro de uma cadeia na França”, conta, com empolgação.

Para Marlene Lisboa, dona da ArtVídeo, em atividade desde 1993 na Savassi, o caminho para manter a locadora aberta foi diferente. A unidade foi adquirida por seu marido, um apaixonado por arte, cinema e colecionador de antiguidades. O espaço, que chegou a ocupar dois grandes cômodos repletos de filmes, hoje funciona em apenas um. Para se reinventar diante da queda no número de clientes, a loja passou a combinar locações com a venda de itens antigos.
Com um acervo de mais de 10 mil títulos, ela vê na manutenção da loja uma forma de preservar memórias e manter vivo o sonho do marido. Apesar da frequência de clientes ser bem menor do que há alguns anos, a locadora ainda é frequentada por moradores da região e apaixonados por clássicos do cinema, que sempre expressam o desejo de vê-la ativa. Acompanhando de perto as transformações naturais no comportamento do público e na forma de vivenciar o cinema, Marlene reflete:
“Eu acho que, por exemplo, o estudante de cinema era muito interessado. Ele vinha para a locadora, ele pegava aqueles filmes e conversava sobre os filmes. Eu não sei como é que eles fazem hoje”.
Além de um espaço cultural, as locadoras também eram pontos de encontro e socialização. Era comum receber grupos de amigos, famílias e pessoas interessadas em conversar e aprender mais sobre cinema, uma perda sentida por muitos dos que viveram esse período de perto. Marlene compartilha desse sentimento:
“Todos perderam. As famílias perderam. Eu nunca ficava aqui sozinha. Estava sempre batendo papo, entregando o filme, eles falando se tinham gostado, se não tinham gostado”.
Da mesma forma, Antônio Thomás, que viveu a adolescência na época das locadoras e começou a colecionar DVDs como forma de manter por perto os filmes que amava na infância, também vê o fim desses espaços como a perda de algo que já foi um verdadeiro evento:
“A locadora era um evento que íamos com amigos, ficávamos horas e horas, agora não tem isso mais. Temos acesso muito rápido ao que queremos. Isso gera frustração e ansiedade", lamenta.
Para os proprietários das duas locadoras, o futuro dos negócios é incerto e dificilmente será levado adiante pelas próximas gerações. Marlene, que não tem na loja sua principal fonte de renda, acredita que suas filhas não darão continuidade ao trabalho. Já Randolfo, cuja locadora ainda é sua principal atividade, busca manter viva sua paixão pelo cinema enquanto garante sustento e não descarta a possibilidade de vender o negócio, se necessário. Ainda assim, ambos seguem iluminando Belo Horizonte com memórias afetivas e conquistando corações que guardam esses espaços com carinho.
Queda das locações
Os desafios enfrentados pelas locadoras começaram antes mesmo da chegada das plataformas digitais, com a expansão da pirataria no Brasil. Segundo a União Brasileira de Vídeo, entre 2006 e 2008, cerca de 60% dos DVDs em circulação eram piratas, um fenômeno que provocou uma queda de 46% nas locações nesse período.
Outro fator que contribuiu para o apagamento das locadoras foi o encerramento das atividades das distribuidoras de filmes no Brasil. Randolfo, da Star Vídeo, também compartilha sua visão sobre o impacto dessa mudança:
“As majors, que são as grandes, dominavam o mercado: Columbia, Warner, Paramount, Universal e Disney. Elas não trabalham mais aqui na América do Sul. É muito doido isso, né? Mas eu atribuo isso à economia desse país.”
Anos depois, o avanço dos serviços de streaming transformou de forma definitiva a maneira como consumimos filmes, consolidando uma nova era e acelerando o declínio das locadoras tradicionais. O principal atrativo passou a ser o acesso a um vasto catálogo de títulos por um valor mensal acessível, tudo isso sem sair de casa.
A maior plataforma do segmento, a Netflix, chegou ao Brasil em 2011 e hoje reúne mais de 6 mil títulos entre filmes e séries, segundo a Agência Nacional do Cinema. De acordo com o IBGE, 42,1% dos brasileiros assinam algum serviço de streaming. A Netflix, sozinha, contabiliza cerca de 25 milhões de assinantes no país, segundo um pacote comercial enviado pela própria empresa para venda de publicidade no terceiro trimestre de 2024. Isso representa 23% de participação de mercado no Brasil, o que a mantém na liderança do setor, à frente de concorrentes como Amazon Prime Video (21%), Disney+ (15%), HBO Max (12%) e Globoplay (11%), conforme dados do JustWatch referentes ao primeiro trimestre de 2025.
A queda na procura por filmes em formato físico levou ao fechamento de cerca de 99% das quase 300 locadoras que já existiram na Grande BH. Nem mesmo a gigante Blockbuster resistiu: com quase 10 mil unidades no mundo e cerca de 200 no Brasil, a rede declarou falência em 2010 após não se adaptar ao avanço dos streamings.
O que ficam são as memórias
Para alguns, fechar a locadora foi uma decisão difícil, mas inevitável diante das mudanças que se impunham. Cláudio Alvim, que começou sua trajetória em 1990 movido pela paixão pelo cinema, chegou a administrar mais de dez lojas entre Belo Horizonte e cidades da região metropolitana, como Santa Luzia, Vespasiano, Jaboticatubas e Pedro Leopoldo. Cada unidade contava com um acervo médio de mais de 6 mil DVDs. Além de manter suas próprias lojas, ele também montava locadoras para revendê-las a outros empreendedores. Em 2010, optou por encerrar voluntariamente o negócio, preferindo sair antes que o mercado físico fosse completamente engolido.
“Eu comecei a agregar valores, colocar lan house junto, papelaria, serviço de recebimento de contas... Aí você via que a locadora ia diminuindo e o novo negócio ia crescendo. Já não tinha mais aquela expectativa de antes. Mesmo montando locadoras para vender, já não estava conseguindo. Passei, então, a vender os DVDs dentro da própria locadora”, relata.

Cláudio se orgulha do legado que construiu e das conquistas que acumulou ao longo dos anos, como ter sido o primeiro a informatizar uma locadora em Belo Horizonte, com o acervo catalogado por computador, e por ter alugado todos os 400 filmes disponíveis na noite de inauguração da unidade de Santa Luzia, cidade onde ainda reside. Entre as antigas Filmarte, Histórica Vídeo, Cinemart e outras tantas lojas que comandou, hoje restam as boas memórias:
“Em Santa Luzia, grupos de jovens se reuniam para ir à locadora no sábado de manhã. Passavam no supermercado, compravam refrigerante, pipoca, e passavam a tarde vendo filme.”
Com um legado tão grande, vieram também a fama e o carinho dos antigos clientes pelas ruas da região metropolitana:
“Teve um caso em que uma ex-cliente nossa chegou com o marido e as filhas, cumprimentou a mim e minha esposa e nos agradeceu com lágrimas nos olhos. Disse: ‘Queria te agradecer muito. Conheci meu marido na sua locadora e combinávamos de nos encontrar por lá’. Ou seja, são coisas que ficam pra eternidade”, relembra.
Em meio às lembranças e reflexões, os antigos e atuais locadores entrevistados nutrem o desejo de que o universo das locadoras volte a ganhar fôlego, impulsionado por grupos nostálgicos em tempos de streaming, como vem acontecendo com o ressurgimento dos discos de vinil.
Editoria: Juja Miranda
Revisão: Gabriel Barcelos