Por Gabriel Martins
Peça uma história a um vendanovense e ele lhe falará sobre o Capeta do Vilarinho. Fale sobre chuvas com um vendanovense e ele lhe contará sobre um conhecido que morreu em algum dos incontáveis alagamentos da Vilarinho. Pergunte a um vendanovense onde ele mora, e se a resposta não for “É longe pra caramba”, ela provavelmente será: “É onde ficam as Quadras da Vilarinho”.
A Região Norte de Belo Horizonte, Venda Nova, possui 312 anos, existindo desde o Brasil Imperial. Seu nome contradiz o que ela realmente é, já que ao invés de centros comerciais, é composta por quilômetros e quilômetros de áreas residenciais recheadas de igrejas protestantes e com apenas alguns comércios espalhados. Seu maior ponto comercial - que, por sinal, se chama Venda Nova também - fica logo em sua saída.
Culturalmente, não há muito o que se ver ou fazer em Venda Nova. É comum ouvir que é um ótimo lugar para se morar: pacato e com mercados e farmácias por perto. Porém, a falta de lugares para frequentar é clara, como se alguém tivesse esquecido de avisar à região que ela faz parte da capital dos bares. Esse esquecimento vai além da ausência de locais para se divertir à noite. Certos bairros da região possuem ruas numeradas, como se nem sequer tivesse havido um esforço de dar um nome a elas. “Onde você mora?” “Na Rua Seis, entre a Cinco e a Sete.” Nunca deixarei de achar esse tipo de diálogo muito triste.
Uma região de uma das maiores metrópoles do Brasil em que homens a cavalo e com carroças ainda são uma visão comum. Um local que nem sequer as grandes redes de fast food e hipermercados alcançam (exceto pelos Supermercados BH). Não é à toa que muitas pessoas sequer sabem que Venda Nova é uma região de BH, e não mais uma cidade da Região Metropolitana.
Mas chega de falar do que não tem em Venda Nova. Eu, como morador há 21 anos, sei exatamente o que tem lá: pessoas. O que essas pessoas fazem? Saem de Venda Nova. Qualquer um que queira algo que não alimentos ou remédios deve procurar em outra região da cidade. O caminho de saída geralmente é o mesmo: se não for a Avenida Vilarinho (popularmente conhecida pelos seus alagamentos constantes), a Avenida Padre Pedro Pinto é a paralela que faz o mesmo trajeto. Ambas passam pelas Quadras da Vilarinho, o local mais importante de toda a região.
Em meio a esse vácuo de substância, existiam as quadras. Local histórico onde ocorriam bailes funk e partidas esportivas (principalmente bailes funk). São inúmeras as vezes que passei pela porta e vi uma grande fila de rapazes com blusas de time e bermuda até a canela e moças com shorts e croppeds. A importância do lugar é tamanha que até a cabine do MOVE que fica em frente a ele foi nomeada em sua homenagem. As quadras ganharam relevância nos anos 80, devido à primeira e única lenda urbana da região, à qual os vendanovenses tanto se apegam: o Capeta do Vilarinho.
Em um dos diversos bailes noturnos da época, um homem charmoso e desconhecido entrou no ambiente, encantou todas as mulheres, causou inveja em todos os homens e dançou com várias moças, trazendo o holofote todo para si. Durante um passo de dança, seu chapéu caiu, revelando algo chocante: um par de chifres em sua cabeça. O local veio abaixo, os olhares de admiração se tornaram de terror e vários gritos foram ouvidos. O homem, em pânico, correu para a saída e nunca mais foi visto, recebendo imediatamente a alcunha de Capeta.
As quadras são eternamente marcadas por essa história, um suspiro de cultura e identidade para a região, algo a que me apego firmemente. Foi nesse local que cresci e me desenvolvi, e existe algo ali que é reconhecível para as pessoas de fora. Um lugar por onde passo todos os dias, onde o prédio permanece alheio à pacatez da região e impassível, com uma fachada recheada de buracos deixados pela tinta velha. Ele me lembra diariamente de que não cresci em um mero local de passagem.
Pelo menos, é assim que me lembro. Ao final de 2024, grande parte das quadras foi vendida, incluindo a grande fachada que ficava na esquina, da qual restou apenas um pequeno pedaço que mal pode ser visto. Por meses, assisti diariamente, pelas janelas do ônibus, à demolição do berço do Capeta do Vilarinho. Cada manhã e noite passada tornava a esquina progressivamente mais irreconhecível. Cada trator novo passando por cima do entulho me doía mais do que havia doído no dia anterior.
Eu, assim como muitos vendanovenses, nunca entrei nas Quadras da Vilarinho, nunca dancei em um baile ou assisti a uma partida lá. Mesmo assim, me apertou o coração ver seu fim. As quadras foram substituídas por uma loja de autopeças, que não se distingue das que estão antes dela e muito menos das que vêm logo depois, independente do sentido da avenida. Nunca entrei lá, mas, quando passo por aquela esquina, só consigo pensar em como eu as quero de volta.
O prédio era tão alheio a tudo, principalmente à realidade da região, que nunca percebi que ele também era alheio à própria existência. Alheio à sua existência como o bastião de algo que trazia uma dose de cultura e, por consequência, vida à região. A destruição do prédio não apenas deixou Venda Nova com uma história a menos para ser contada, mas também a submergiu em algo muito pior do que as águas da chuva que vêm com o fim de ano.
Editoria: Alice Pimenta
Revisão: Gabriel Barcelos
Design e capa para redes: Carolina Cerqueira