Três faces do Giallo
Misture voyeurismo, trilhas sonoras arrepiantes, um toque de confusão visual no seu telespectador e seu filme giallo está pronto, aproveite!
Por Carolina Cerqueira
Imagine um livro de receitas. Em uma das páginas, há uma fórmula simples e irresistível: uma pitada de assassinato misterioso, duas colheres de protagonistas femininas vulneráveis (ou astutas), uma xícara cheia de trilha sonora dramática, uma camada espessa de violência estilizada e, por fim, o ingrediente secreto — um assassino mascarado que só será revelado na última mordida. Essa é a essência do giallo, subgênero cinematográfico de suspense italiano que, como um bom bolo, pode até seguir uma receita parecida, mas depende inteiramente das mãos de quem o prepara.
Nas cozinhas escuras do suspense italiano, a tríade Mario Bava, Dario Argento e Lucio Fulci são verdadeiros chefs. E nos filmes “La ragazza che sapeva troppo”, “Profundo rosso” e “Non si sevizia un paperino ", os diretores usam os mesmos ingredientes, mas seus filmes têm texturas, aromas e sabores próprios. O curioso é que, mesmo com tantos pontos em comum, cada filme apresenta um diferencial marcante — algo que o torna único, mas ainda assim reconhecível dentro do gênero.
Voyeurismo e estilização da violência em “Olhos diabólicos”
O título em inglês "The Girl Who Knew Too Much” (1963) brinca com o clássico de Hitchcock ‘The man who knew too much” (1934). A substituição de “man” por “girl” aponta uma inversão interessante, Bava está dizendo que seu filme também é sobre alguém que presencia algo que não deveria e é lançado em uma trama de conspiração e perigo, mas agora com uma protagonista feminina — algo incomum na época, tendo em vista que usar mulheres, que carregavam um estereótipo de serem mais bobinhas em um gênero carregado de mistérios e assassinatos, e ainda, de ser a responsável pela investigação, como uma "detetive amadora" foi algo disruptivo.
Em preto e branco e na pegada noir, “La ragazza che sapeva troppo” se ancora no olhar da protagonista Nora Davis (Letícia Román) — uma turista americana que vai para Roma para visitar uma tia — e ver os olhares que recaem sobre ela. O filme começa com uma sequência no aeroporto, onde uma câmera se move de maneira fluida entre os rostos anônimos no meio da multidão. Aqui já temos um clima de observação e mistério, sugerindo que algo está prestes a acontecer, ainda que a protagonista não tenha consciência disso. E quando menos se espera, o primeiro “crime” acontece — o rapaz que estava sentado ao seu lado durante o voo, e que lhe oferece um maço de cigarros de maconha é pego, fazendo com que ela tente descartar o maço antes da revista policial, que nunca acontece, mas a sensação de tensão paira durante a cena toda.
Após a chegada de Nora na casa de sua tia, ela se vê no centro de uma série de assassinatos com características semelhantes às das revistas policiais que costuma ler. Sendo o principal, o assassinato que ela testemunha — ou acredita ter testemunhado — que acontece em um parque sombrio no meio da madrugada, e Bava usa o espaço com extrema precisão, de arbustos como cortinas, postes de luz que lançam sombras diagonais, closes súbitos que revelam olhos no escuro. Tudo é visto — ou supostamente visto — de longe, por entre grades, frestas de portas e ângulos altos, quase como se o próprio espectador fosse cúmplice do voyeurismo que permeia a trama.
Fascinada por esse universo e frustrada com a ineficácia da polícia, ela então passa a investigar por conta própria os crimes que a cercam. E nessa jornada, ela conta com a presença ambígua do Dr. Marcello Bassi (John Saxon), médico de sua tia, que ora parece ajudar, ora desacredita de suas suspeitas, e que também se torna um suspeito, o que contribui ainda mais para o clima de dúvida e tensão que permeia o filme.
Mesmo com menos sangue que os gialli posteriores, Bava estiliza a violência com elegância expressionista. Há uma cena, por exemplo, em que a câmera invade um espelho — recurso que ele voltaria a usar em “Sei donne per l'assassino” (1964) —, distorcendo a imagem e confundindo o espectador. É um filme onde o medo está sempre sendo construído pelo ponto de vista: da personagem, do assassino e, sobretudo, da câmera.
Nota: La ragazza che sapeva troppo 4/5
A arte de confundir: o jogo mental em “Prelúdio para matar”
Em Profondo rosso (1975), Dario Argento brinca com a percepção, enganando o espectador com imagens que mostram tudo — mas de forma que nada se veja de fato. Repleto de sequências estilizadas e trilha sonora marcante, características sempre presentes nos filmes do diretor, o longa é um dos marcos do gênero, que sabe combinar mistério, violência gráfica e surrealismo.
A trama gira em torno de Marcus Daly (David Hemmings), um pianista que presencia o assassinato brutal de uma médium e, convencido de que notou algo importante na cena do crime, decide investigar por conta própria, com a ajuda da repórter Gianna Brezzi (Daria Nicolodi). O que se segue é uma espiral de pistas falsas, personagens ambíguos e imagens que revelam mais do que parecem — ou melhor, parecem revelar mais do que realmente mostram.
Desde a primeira sequência de assassinato, Argento planta a ilusão, a câmera passa rapidamente por um espelho, e nesse reflexo se encontra a verdadeira identidade do assassino. O espectador vê, mas não vê. Esse é o jogo do diretor, esconder o assassino à vista de todos. E mais do que esconder, ele cria distrações deliberadas — como brinquedos mecânicos, quadros bizarros, indícios de que o possível assassino é aquele que ele mostra pequenos detalhes, como o lápis de olho, que coincide com a mesma que Gianna usa, e trilhas sonoras dissonantes compostas pela banda Goblin — que ampliam a sensação de confusão e fascínio.
Outro truque do diretor está na montagem, com cortes rápidos, close-ups em detalhes irrelevantes e a mudança constante de perspectiva fazem com que o espectador ache que está sempre um passo atrás da verdade, mesmo quando acredita estar à frente. Argento subverte o pacto do whodunit tradicional, em vez de uma investigação que leva à verdade, ele propõe um labirinto, onde a solução não está apenas na lógica, mas no reconhecimento da imagem e do som — muitas vezes já vistos e ouvidos antes, mas ignorados.
Assim, Profondo rosso não é apenas sobre descobrir “quem matou”, mas sobre perceber o que foi visto. A revelação final, quando o protagonista se dá conta de que a resposta sempre esteve diante dele, ressoa com o próprio espectador — que, como ele, foi vítima da mise-en-scène de Argento.
Nota: Profondo rosso 5/5
Trilha sonora como ferramenta de horror e repressão em “O estranho segredo do Bosque dos Sonhos”
Lucio Fulci, conhecido por seu olhar cru e pessimista sobre a humanidade, usa “Non si sevizia un paperino” (1972) não só para expor o lado mais obscuro de uma comunidade rural italiana, mas também para reinventar o papel da trilha sonora no giallo. Se em outros filmes do gênero a música acompanha os assassinatos de forma estilizada e até coreografada, aqui ela é usada como contraponto, criando distanciamentos inquietantes e ironias brutais.
Em uma aldeia rural no sul da Itália, uma onda de assassinatos de crianças abala a comunidade. Entre segredos familiares, histeria coletiva e superstições locais, o jornalista Andrea Martelli (Tomás Milián) tenta descobrir a verdade por trás dos crimes. A investigadora Patrizia (Barbara Bouchet), uma mulher moderna vinda da cidade, também se envolve na trama, desafiando os costumes locais, em um dos filmes que já estava se encaminhando para conceber gênero slasher.
Aqui, Fulci desloca o giallo de sua zona de conforto — a cidade, o luxo, os assassinatos sofisticados — para um vilarejo pobre e católico no sul da Itália. Assim, em vez de ambientes controlados e espaços urbanos labirínticos, temos planícies abertas, ruínas e estradas de terra. O terror aqui não se esconde em sombras, mas no sol do meio-dia. Crianças são assassinadas uma a uma, e a pequena comunidade mergulha em paranoia, preconceito e caça às bruxas.
A trilha composta por Riz Ortolani, mistura tons melancólicos, quase sacros, com uma instrumentação suave que contrasta violentamente com as cenas de horror. Em uma das cenas mais perturbadoras do filme, uma das personagens vulneráveis da trama, Maciara (Florinda Bolkan), é brutalmente espancada por três homens em um campo isolado, em plena luz do dia. A câmera de Fulci observa o massacre sem cortes apelativos, mas com uma crueza seca, impiedosa. O que mais aqui choca não é apenas a violência física (que é intragável), mas o modo como Ortolani escolhe acompanhar a cena, que inicialmente começa com Rhythm, de Richard Cocciante. Um rock clássico estilo anos 70, com guitarras pesadas mas com ritmo dançante, como já sugere o nome, que dá início a uma cena que sugere uma certa malicia e violência. No entanto, após o início da agressão a trilha muda, e passa a ser uma canção doce, apaixonada, com piano, violino e voz predominantes, chamada “Quei giorni insieme a te”, que fala de amor e saudade. O efeito é perturbador, a beleza da música amplia o horror da imagem, numa ironia que revela o sadismo e a hipocrisia moral da sociedade retratada.
Essa escolha de trilha sonora intensifica o impacto da violência, e expõe a desconexão entre o discurso religioso/moralista e as ações reais dos personagens, muitas vezes movidos por preconceito, fanatismo ou simples ignorância. Fulci utiliza o som como denuncia — um ruído estético que incomoda não por sua dissonância, mas por sua beleza fora de lugar.
O uso do silêncio e da ambiência sonora também têm papel fundamental. Em vários momentos, o diretor abandona a música para valorizar ruídos naturais, como o vento entre as árvores, o latido de um cachorro ou o barulho seco de um osso quebrado. Esses detalhes sonoros ajudam nessa construção de uma atmosfera claustrofóbica, onde a violência não é estilizada, mas real, próxima, inevitável.
Nota: Non si sevizia un paperino 5/5
Editoria e revisão: Gabriel Barcelos
Capa e design para redes sociais: Carolina Cerqueira