Símbolos de pertencimento: o que a história oficial de Belo Horizonte não conta?
“Minha vida é subir Bahia e descer Floresta”.
Por Alice Carvalho e Ester Tadim
“Minha vida é subir Bahia e descer Floresta”. Essa frase ecoa no centro de Belo Horizonte, símbolo da metrópole, onde emerge uma história de resistência anterior à capital moderna: o Largo do Rosário
No ano de 1897, com a construção da cidade de Belo Horizonte, muitas histórias, memórias, construções e culturas do antigo Curral Del Rey foram apagadas. A história oficial não fala de quem estava aqui antes do planejamento da capital mineira, no início do século XIX. O Largo do Rosário, no cruzamento das ruas Timbiras e Bahia, era composto por algumas casas, pela Igreja do Rosário e um cemitério com sessenta sepulturas. Atual patrimônio cultural e imaterial de Belo Horizonte, é um símbolo da segregação que marcou nossa cidade desde sua fundação, e hoje está no centro do trabalho de memória da história e cultura negra em BH.
O antigo curral Del Rey era majoritariamente composto por negros, mas essa população era impedida de participar dos espaços religiosos católicos. Com essa segregação, a comunidade criou sua própria Irmandade: Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Para que essas pessoas pudessem ter um espaço de culto digno, em 1807 foi enviada uma carta a Dom João VI solicitando autorização para construir uma capela própria e um cemitério. O rei de Portugal concedeu a autorização, desde que a comunidade arcasse com os custos. Em 1819, a capela foi erguida pelas próprias mãos da população, e tornou-se um espaço de resistência e religiosidade. Porém, pouco se sabe sobre essa comunidade, que foi esquecida pela história oficial belorizontina por 125 anos.
O Padre Mauro Luiz da Silva, mestre e doutor em ciências sociais e diretor e pesquisador do Museu do Muquifu, é presidente do Comitê de Salvaguarda do Largo do Rosário, instituição que trabalha pela memória do espaço simbólico e físico do Largo do Rosário. “A construção da cidade de Belo Horizonte soterrou histórias e memórias afroindígenas. Em 1826, Aarão Reis, engenheiro chefe da comissão construtora da cidade, deu um depoimento para o jornal Estado de Minas afirmando que Belo Horizonte tinha o potencial de ser uma grande cidade, porque, segundo ele, quando as construtoras chegaram aqui, não havia nada. Esses grupos não identificaram nada que merecesse preservação, nada que pudesse permanecer para que a história do antigo Arraial, do território e das pessoas que viveram aqui pudesse ser contada”, reflete o padre.
As ruas Guajajaras e Bahia e a avenida Álvares Cabral tornaram-se ícones da cidade moderna. A vida parecia se acabar entre a descida da rua da Bahia e a subida do viaduto Floresta. Em 1897, a Igreja do Rosário dos Pretos foi demolida, e desapareceram com ela sem deixar rastro os corpos sepultados no cemitério e as casas da região. Enquanto as histórias dos povos negros e indígenas que já viviam aqui eram apagadas, a vida da cidade moderna era celebrada. Esse processo permanece até hoje.
A construção da nova capital se deu por meio desse projeto positivista e excludente. “Belo Horizonte nasce sobre esse alicerce da eugenia e do higienismo, foi um projeto racista e eurocêntrico que edificou essa cidade. Cria-se aqui uma cidade limpa, uma cidade organizada, de linhas retas, aos moldes de Paris e de Washington. Os rios foram soterrados e canalizados, e com eles todos os projetos do antigo Arraial… achataram a cidade e nós estamos colhendo os frutos dessas decisões”, diz Padre Mauro. De acordo com ele, portanto, Belo Horizonte foi erguida sobre um modelo opressor e colonialista. “Tem gente preta e indígena soterrada sob o asfalto cinza da cidade dos homens brancos que se sentem donos de tudo.”
Sem memória, o desconhecimento da história da cidade perpetua o racismo e o apagamento da memória negra. Enquanto a história da metrópole planejada pelos homens brancos da elite é ensinada nas escolas, a cidade segue sem conhecer de fato seu próprio passado e seus patrimônios. Somente em 2022, com a luta do Comitê de Salvaguarda do Largo do Rosário, o local foi reconhecido como patrimônio cultural, sendo registrado como Patrimônio Cultural e Imaterial de Belo Horizonte. Hoje, na esquina da Bahia com a Timbiras, há uma placa que fala do largo, tão pequena que não transmite a grandiosidade da história que está ali. Mas ela é um passo importante para a construção da memória que não aparece nos arquivos oficiais.
Com um atraso de 213 anos, surge agora uma esperança: que a história negra, até então desconhecida, finalmente seja lembrada. “A educação é a única possibilidade de se construir e de se edificar cidades que não sejam racista e colonizadas. É somente através da educação, principalmente dos jovens e das crianças de hoje, que no futuro as pessoas poderão andar pela cidade e se reconhecer nesses espaços”, ressalta Padre Mauro. Recuperar a memória do Largo do Rosário não é uma simples questão de resgate histórico, mas um ato de resistência contra o racismo estrutural e religioso, que mata. Conhecer e preservar essas histórias é essencial para reconhecer nossos antepassados e promover uma sociedade mais justa.
Atualmente, algumas iniciativas atuam ativamente nesse reconhecimento, dentre eles o projeto NegriCidade, um grupo de pesquisa dedicado à história negra de Arraial do Curral Del Rei, do qual o padre é fundador. Outro exemplo é o projeto "Caminhos do Rosário", que organiza visitas ao território da Capela do Rosário e do Cemitério da Irmandade dos Homens Pretos. A transformação do local em um memorial e a implementação de políticas educacionais inclusivas são passos fundamentais para garantir que essa parte significativa da história de Belo Horizonte não seja mais apagada pelo preconceito. Assim, fortalecemos não apenas a memória coletiva, mas também os pilares de uma cidade onde a equidade e o respeito à diversidade devem ser valores inegociáveis.