Por Mariana Lage
Em 22 de novembro de 2023, uma aluna da graduação em Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) interrompeu a própria fala na abertura de um evento internacional para denunciar o professor Paulo Roberto Loyolla Kuhlmann por assédio moral e sexual. A estudante era cerimonialista do Fórum Universitário Mercosul, que aconteceu no Campus V da UEPB, em João Pessoa, e foi transmitido ao vivo no Youtube. Ela se dirigiu aos professores na mesa de abertura, entre eles a vice-reitora da universidade.
“Dentro da UEPB têm acontecido alguns casos de assédio oriundos de um professor específico, o professor Dr. Paulo Kuhlmann. Eu fui uma das alunas assediadas.” A estudante conta que procurou a ouvidoria da universidade, mas “era a minha palavra contra a dele”. Como ela não tinha provas, segundo o órgão, a denúncia não foi aceita. No microfone, ela anuncia que vai fazer um boletim de ocorrência e entrar com um pedido de processo judicial contra o professor. A plateia aplaude, e o vídeo corta para a mesa, onde se sentam três homens e quatro mulheres. Duas delas sussurram uma com a outra. “Eu falo por todas as vítimas do Paulo. Foram muitas vítimas, muitas meninas que vieram até mim. Eu quero deixar bem claro que eu vou fazer o possível para defender as minhas amigas, e ele vai sair pela porta de trás da UEPB. Senhora vice-reitora, eu queria deixar aqui a minha denúncia. A universidade falhou ao deixar o professor Paulo continuar dando aula. Ele é um perigo dentro da universidade, do Campus V. Eu gostaria muito que a senhora tomasse alguma providência, até porque hoje mais cedo a senhora disse que a UEPB tem uma política antirracista e anti-machista, e eu quero ver na prática. Eu não vou deixar as minhas amigas desamparadas e eu vou lutar por mim e por elas.”
O caso repercutiu em diversos veículos de comunicação do país, e é fácil achar o vídeo no Youtube. Segundo a reportagem do g1, a vice-reitora da UEPB Ivonildes Fonseca disse que “o fato de buscar ajuda da ouvidoria já deveria ser configurado prova a favor da vítima”, e que “em casos em que a mulher não tem elementos para prova, o sofrimento dela, que vai buscar ajuda especializada, já deveria ser uma prova”. Ela também afirmou que a estudante poderia e deveria procurar a justiça porque a universidade tem “limites de competência e os processos se arrastam”.
Em janeiro de 2024, eu procurei a coordenação do setor da unidade da UFMG onde era estagiária para relatar que vinha sofrendo assédio de outro funcionário. Na época, eu acreditava que aquelas pessoas, que sempre criticavam professores e alunos conservadores, que me contrataram propagandeando o trabalho progressista da atual gestão da faculdade, que se diziam pessoal e profissionalmente preocupados com a justiça social, compreenderiam que eu era vítima de assédio, por parte do responsável direto pela minha supervisão, uma pessoa que me perseguia e com a qual eu não tinha como cortar contato enquanto trabalhasse lá.
Amigo pessoal e ex-colega de faculdade do assediador, o coordenador do meu setor me disse que “a situação era uma merda” mas que os dois tinham “abertura e intimidade” para conversar sobre isso, que sentia muito, e me parabenizou por ter tido coragem de contar aquilo, e esperava que tudo se resolvesse. Na ocasião, a resposta me pareceu gentil, mas era a primeira demonstração de que o que aconteceu comigo seria tratado como um problema pessoal – por toda a unidade, primeiro pela coordenação do meu setor e depois pela diretoria, que recebeu a denúncia que eu eventualmente fiz na ouvidoria da UFMG. Pensei que seria um risco que um caso assim acontecesse dentro da instituição (certo?), então confiei que alguma coisa mudaria, mesmo que eles agissem apenas para se proteger. Deixei bem claro que não queria um pedido de desculpas, só que aquele homem não me dirigisse a palavra ou me enviasse mensagens além do que fosse estritamente relacionado ao trabalho. Ao longo de todos esses meses, mas começando nesse dia, percebi que não era eu contra um assediador, mas eu contra uma instituição. Esqueci que aqueles dois homens eram amigos desde que eram calouros na faculdade, e que se é difícil ganhar de um homem, é muito difícil ganhar de dois, e é ainda mais difícil ganhar de uma instituição. “É a primeira vez que ele tem uma estagiária”, disse meu coordenador.
A sala onde eu trabalhava é ampla, e as mesas de todos os funcionários ficam espalhadas nesse mesmo ambiente, em posições diferentes. Na minha última semana trabalhando lá, eu já sabia que ia para outro estágio, mas ainda não tinha pedido demissão; já tinha carinhosamente apelidado de psicopata aquele homem que me procurava fora do horário de trabalho, no Instagram se eu não respondesse no Whatsapp, durante as minhas férias… mesmo depois de eu informá-lo clara e gentilmente (uma preocupação feminina) que eu não estava interessada em nenhum tipo de relação romântica e/ou sexual com ele. Na tarde de segunda-feira dessa última semana, enquanto eu trabalhava, ele me enviou uma mensagem dizendo que queria conversar comigo. Pelo lugar onde me sentava, eu sempre estava no campo de visão dele, e ele fora do meu. Eu não estava em perigo físico e não acredito que tenha estado. Mas estava presa com aquela pessoa naquele lugar, mesmo que houvesse mais gente lá, e quem já passou por uma situação parecida sabe que o seu espaço, sua atenção e seu tempo são invadidos o tempo todo por uma pessoa que parece querer arrancar um pedaço seu. Eu estava encurralada. Não importa se eu pudesse e fosse sair daquela sala algumas horas depois. Ele estaria lá no outro dia e provavelmente continuaria agindo da mesma forma, como vinha e continuou fazendo. Nem todo perigo é físico. No dia seguinte, me demiti. No próximo, procurei os meus coordenadores. Segundo eles, na resposta da minha denúncia na ouvidoria, três meses depois, essa discussão foi iniciada por eles para me dar um feedback do meu trabalho. Isso é mentira.
Eu entrevistei algumas pessoas antes de escrever esse texto. Elas são oficialmente minhas fontes, no sentido de que me informaram e informaram a escrita dele. Mesmo que não sejam citadas ou nomeadas aqui, e mesmo que oficialmente isso não seja uma reportagem – problema de gênero para os estudantes de jornalismo, mas estou divagando. Um professor de outra unidade da UFMG que dava aula no primeiro período da graduação há décadas foi denunciado por dezenas de meninas, que não conseguiam assistir a suas aulas por sofrerem de crises de ansiedade, e foram reprovadas por faltas. Ele falava dos corpos, cabelos e roupas que elas usavam, e fazia comentários explícitos de cunho sexual, inclusive de forma racista. Uma aluna da graduação envolvida no movimento estudantil e em um projeto de extensão que lutava contra o assédio na universidade, que também foi vítima desse professor, me mostrou o documento de três páginas que foi enviado ao colegiado do seu curso com uma lista de comentários que esse professor fazia em sala. Segundo o órgão, ele era muito importante na instituição e o que ele dizia não deveria ser levado a sério, porque estava muito velho e senil. (Homens são sempre velhos demais, novos demais, experientes demais ou inexperientes demais para serem responsabilizados por suas ações.) Adiantaram em alguns meses a saída compulsória do professor e abonaram as faltas das meninas, mas nada mais. Ele se aposentou com honrarias no ano passado. Um pesquisador de outra unidade me contou histórias de diversos professores que cometeram assédio sexual e moral, racismo, abuso de poder etc. Ele disse que sempre ouviu que “se não tem denúncia, não tem assédio”.
Eu tinha planejado produzir uma reportagem tradicional, inventariando o que a UFMG e cada uma de suas unidades (faculdades, escolas e institutos) têm de política contra todo tipo de assédio, além de racismo, misoginia, homofobia, transfobia e outras formas de violência contra minorias sociais. Também tentei procurar vítimas de Boaventura de Sousa Santos, professor de sociologia português ligado à Universidade de Coimbra, entre elas a deputada federal Bella Gonçalves, ex-aluna e professora da UFMG. Acredito que esses elementos possam formar uma reportagem relevante. Mas não é a minha.
Por muito tempo, eu debati se deveria ou precisava (não, queria, diria minha terapeuta) incluir aqui o fato de que em certo momento eu me relacionei com esse homem. Se eu dei às minhas fontes e, por consequência, às outras vítimas que elas citaram a autonomia de dizer quais detalhes poderiam ou não ser publicados, certamente também poderia dá-la a mim mesma. Faz diferença eu dizer que nada teria acontecido se a servidora que coordenava o setor não tivesse me incentivado a ter algo com ele em primeiro lugar, mesmo que eu fosse estagiária, que não tinha problema? Faz diferença eu dizer que foi questão de dias? Que quis distância nos segundos – porque os primeiros eu não percebi – sinais de um comportamento questionável, estranho, assustador? Faz diferença eu ter passado um tempo desconfortável mas calada, dando atenção a ele porque… me sentia na obrigação de ser gentil com um homem, ou porque sabia que tinha que manter uma relação harmoniosa com ele, meu superior, ou os dois ao mesmo tempo? Isso te lembra alguma coisa? Eu me recuso a tentar produzir qualquer justificativa para o comportamento de outra pessoa que dependa de algo como “ah, mas antes…”. Por que eu preciso responder pela ação dele? Racionalizá-la, compará-la com outros tipos de violência, explicar cada milímetro do que aconteceu para provar que tudo está fora do lugar?
Acho que faz diferença, sim. Eu não queria – e continuo não querendo, mas essas duas coisas podem ser verdade – pensar na minha família, colegas de faculdade e desconhecidos lendo isso. Me causava repulsa, culpa e vergonha saber que pessoas que eu nunca vi leram conversas minhas em redes sociais e um relato de cinco páginas que eu escrevi dando todos os mínimos detalhes dessa história, quando ainda acreditava que ia receber uma resposta minimamente responsável da instituição. Meus amigos sabem essa história do avesso. Sem eles não teria aguentado nem um pingo de tudo que aconteceu. Eles me deram apoio e sempre compreenderam tudo que havia de errado nessa situação, às vezes antes de mim. Duas das minhas amigas cuidaram de mim quando vi aquele homem de longe em um bloco no carnaval. Minha coordenação me ouviu, acreditou em mim e me orientou, mesmo que o processo da denúncia na UFMG tenha se mostrado ainda mais violento do que o assédio em si, e mesmo que não tenha havido admissão de erro pela diretoria da unidade ou nenhuma responsabilização para os envolvidos, até onde eu sei. Muita gente leu e releu esse texto antes dele ser publicado, e me ajudaram a colocar em palavras o que aconteceu mesmo antes de eu pensar em colocar essas palavras em algum lugar.
Depois da minha denúncia oficial na ouvidoria, esperei mais sessenta dias por uma resposta, e recebi um grande “lavamos nossas mãos”. Aparentemente, para a Universidade Federal de Minas Gerais, o ato de procurar auxílio não configura prova. No meu caso, o que parecia prova também não configura prova. Fiz uma análise de conteúdo informal da “Resposta NUP 23546.015481/2024-71 - Assédio” e identifiquei que o que mais se repete no texto são palavras no campo semântico de “pessoal”. Há uma linha do tempo, na versão deles, em que a coordenação do setor sabe de uma relação inicial “por meio de informação prestada espontaneamente” por aquele homem e age “de acordo com práticas comuns de compliance”. Ele nunca falou para mim que tinha conversado com a chefia. Três pessoas adultas sob as quais eu trabalhava decidiram que eu não precisava estar envolvida numa discussão que me envolvia. Não de forma pessoal, como insistiram em tratar o assunto, nem profissional.
Eu não sei como ou porquê a coordenadora me incentivou a ter alguma relação com esse homem; não sei que conversas eles tiveram sobre mim desde o início, como se eu fosse um pedaço de carne; não sei se ela não se importou com o fato de que aquilo já tinha começado mal e poderia acabar pior ainda; não sei quando e quanto ela percebeu que nada aconteceu em um vácuo, isolado da instituição, e muito menos sem a influência dela. Fato é que a partir do meu relato ela mudou de postura, ficou calada quase o tempo todo. Enquanto servidora e coordenadora do setor ela tinha, ou deveria ter, os meios e o dever de encarar o que estava acontecendo como uma violência, e reconhecer as relações de poder que constituíam aquela situação desde o início, que implicam não só o assediador mas a ela também. “A gente não achou necessário conversar com vocês dois porque acreditamos que vocês encarariam isso com maturidade”, disse o outro coordenador. Ela concordou. “Vocês dois” era uma unidade possível para eles, um conjunto em pé de igualdade. O fato de eu ser uma estagiária, uma mulher, alguns anos mais nova, não foi colocado em questão. A palavra assédio não foi usada. Ao longo da minha última semana trabalhando lá, nenhum dos dois voltou a tocar nesse assunto comigo.
Desde janeiro, eu passei por um período de adoecimento, por mais que tenha tido ferramentas para processar e elaborar tudo isso, principalmente por ter acesso a tratamento psicológico, que a imensa maioria das pessoas não têm e que deveria ser a maior preocupação de qualquer instituição para começar a se pensar em reparação para vítimas de assédio e outros tipos de violência. Tive um quadro de ansiedade agravado, que evoluiu para depressão. Passei a me odiar, odiar meu corpo, meu cabelo, e achava que de alguma forma eu era responsável pelo que tinha acontecido. Fiquei esgotada, profundamente sozinha, mesmo com uma rede de apoio e sabendo (em algum nível) que eu não estava ficando maluca. Tinha náuseas só de pensar que existiam páginas e páginas minhas tentando convencer a instituição de que uma coisa muito errada tinha acontecido comigo lá dentro. Um dia, precisei voltar para buscar um documento em outro setor, e comecei a chorar na frente das servidoras, com medo de encontrar algum deles. Eu entrei pela porta da frente, peguei um corredor que levava também à sala onde eu trabalhava, e torci para não cruzar com ninguém. Até hoje me causa mal estar passar perto desse prédio, e fico assustada quando vejo um homem parecido com o assediador em qualquer lugar.
A resposta da minha denúncia também diz que a instituição me acolheu e que o problema já tinha sido resolvido, entre outras piadas. “Não há elementos para caracterização de condutas abusivas ou intimidação com incitações sexuais inoportunas, tratando-se de conversas no âmbito de relação privada. [...] A atuação da coordenação foi no sentido de acolher a estagiária em momento delicado e dar suporte para evitar desconforto pessoal, por meio da intermediação do diálogo com o colega. Ainda, pelo conteúdo apresentado e os fatos presenciados, acreditamos que não houve omissão da instituição, que zelou pelo bem-estar da então estagiária”. Meninas, aprendam: só é assédio sexual se o vocabulário for sexual. Um homem que não aceita um não como resposta e tenta capturar sua atenção a todo custo, a despeito do que você diz, não está sendo agressivo. E sim, é possível ter conversas no âmbito privado com um colega de trabalho em ambiente de trabalho, no meio de comunicação usado para o trabalho. Um “momento delicado” às vezes existe só na sua cabeça, não?
Um dia, pesquisei no Google o nome da unidade e “ufmg assédio” e encontrei uma campanha muito bem feita de alguns anos atrás em que a diretora explica timtim por timtim o conceito de cada tipo de assédio, e como a instituição trabalha para combatê-los. Que pena que o meu não entrou na pauta. “Eu já me expus o suficiente e não serviu para nada”, pensei mil vezes. Eu não queria mexer nesse vespeiro de novo, mas sentia que ele nunca tinha parado de mexer comigo.
Mas eu descobri que é possível pegar uma coisa e transformar em outra. Um homem pegou uma rejeição e transformou numa obsessão, pegou um não e respondeu um “duvido”. A instituição onde eu trabalhava pegou a minha denúncia e transformou em um “problema pessoal”, uma forma de se proteger para continuar em pé, como devem fazer as instituições. Em certo momento, meu trecho favorito, dizem que ele não parava de me enviar mensagens, mesmo depois de eu implorar para ele não falar mais comigo, porque “estava preocupado com minha saúde mental”. Se é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo, também é mais fácil para um homem imaginar que você tem um problema na cabeça do que imaginar que você não quer ficar com ele. Mulheres são colocadas em situações perigosas o tempo todo e chamadas de corajosas quando saem inteiras. Eu trocaria qualquer coragem por ter sido deixada em paz, e imagino que muitas mulheres também. Mas a aluna inacreditavelmente corajosa da UEPB, e as outras meninas que passaram por isso com ela, pegou a conivência da sua universidade e transformou em matéria de jornal. Eu realmente me expus bastante, e não descobri ainda o que é “servir para alguma coisa”. Mas estou testando um outro tipo de exposição.