Por Gabriel Barcelos e Gabriel Martins
O Diretório Central de Estudantes (DCE) é uma entidade que representa a totalidade da classe estudantil nas universidades de todo o país. Um de seus grandes objetivos é tornar a vivência universitária mais justa, democrática e acessível através de militância, atividades beneficentes e articulações políticas.
A gestão dos DCEs é composta, naturalmente, por estudantes independentes ou membros de movimentos organizados, que se articulam em Chapas eleitorais, escolhidas em eleições anuais.
No dia 18 de novembro de 2024, a Chapa 1, Ponta de Lança (constituída pelos movimentos Afronte, Correnteza e Juntos) foi eleita para a coordenação geral do DCE UFMG, na gestão 2025/2026. No dia 22 de abril, pouco mais de cinco meses após a posse da nova gestão, militantes do Afronte, durante a prestação de contas do Conselho de Entidades de Base, levantaram a denúncia de que o Correnteza supostamente havia tentado desviar dois mil reais em caixa 2, dias antes do Conselho.
A ação tomou todos de surpresa, levantando reações acaloradas de militantes de todas as praças no que nos foi descrito como uma horrível gritaria de um lado para o outro, com acusações que quase desceram ao nível das ofensas pessoais e xingamentos. A reunião acabou com saídas aos gritos, Correnteza e Afronte, cada qual para seu lado e cantando seus hinos de guerra.
Essa foi a história que chegou aos nossos ouvidos no final do mês de abril, quando começamos o processo de apuração desta matéria. Junto do burburinho de corredores, explodiram nas redes e em grupos de whatsapp repercussões que acumulavam denúncias, acusações, exageros, além de dois documentos oficiais dos movimentos, colocando suas provas à público e abrindo as cortinas de uma briga ruidosa e confusa. Surpreendidos pela repercussão e gravidade das acusações, nos mobilizamos para apurar o ocorrido e apresentar, da forma como nos parece, a ordem fatal dos eventos infelizes que resultaram no desmantelamento simbólico da Gestão Ponta de Lança.
OBS: Não entramos, porém, no mérito das diversas denúncias de comportamentos semelhantes do Correnteza em outras universidades do Brasil e nos concentramos apenas nos últimos acontecimentos dentro da UFMG.
A denúncia
Seis dias depois do Conselho de Entidades de Base (CEB), foi divulgado um documento de nove páginas assinado pelo coletivo Afronte, compilando suas alegações e provas, além de uma narrativa da jornada de sua apuração da “tentativa de roubo”.
Segundo o documento, o Movimento Correnteza teria tentado desviar dinheiro em uma nota fiscal sobre os custos do transporte coletivo para o Conselho Nacional das Entidades Gerais (CONEG) , um evento da União Nacional dos Estudantes que ocorre anualmente e que aconteceu em São Paulo, nos dias 17 e 18 de Abril.
O Correnteza, responsável por providenciar o orçamento do transporte, teria então solicitado a emissão de uma nota fiscal de R$12.000, com a Transpimentel, dinheiro que teria que ser repassado pelo Afronte. Suspeitando de uma movimentação incomum devido ao valor acima da média, o Afronte entrou em contato com o dono da transportadora para averiguar o orçamento. Em ligação à uma representante do movimento, o dono da empresa deu a entender que o valor final para a prestação do serviço e todas as suas despesas, seria, na realidade de R$10.000, havendo um excedente de 2 mil reais, inexplicável para ele. Esse dinheiro seria repassado pela empresa para a conta pessoal de um integrante do Correnteza.
“O combinado era que a empresa emitisse uma nota de R$12.000, sendo que R$2.000 seria repassado ao dirigente do movimento Correnteza.” (DOSSIÊ DO AFRONTE).
Descoberta a tentativa de desvio, o Afronte (responsável pela gestão do caixa do DCE), não repassou o montante solicitado, e encaminhou os dez mil reais, como combinado com a empresa. O movimento consultou a equipe jurídica do DCE, que apontou possíveis crimes por parte do outro coletivo: estelionato, falsidade ideológica e peculato. Inconformados e sentindo que a confiança interna da Gestão havia sido violada, o movimento julgou cabível levar o tema ao CEB, defendendo o controle social interno, respeito e a transparência como formas de enfrentamento dos crimes acusados, ao invés de judicializar o caso através de boletins de ocorrência (como foi sugerido pela assistência jurídica do movimento).
Após a acusação formal, o Correnteza teria então tentado deslegitimar a denúncia, alegando mal-entendido, supostamente impedindo o compartilhamento das provas, e iniciado uma confusão barulhenta, bloqueando qualquer debate democrático e o esclarecimento de possíveis dúvidas.
Na estruturação confusa de sua defesa, o Correnteza também teria apresentado respostas contraditórias sobre o uso dos R$2.0000, ora citando a hospedagem do motorista ou a contratação de um condutor terceirizado devido à urgência do serviço (o orçamento teria sido solicitado no mesmo dia em que seria feita a viagem).
Em todo o ruído, o Coletivo Juntos, que também faz parte da Gestão Ponta de Lança, teria tomado o partido do Correnteza, ignorando as provas apresentadas pela acusação, o que gerou ainda mais desconfiança e desconforto por parte do Afronte.
Apesar de usar a palavra crime três vezes em todo o documento, o Afronte afirma que sua denúncia não visava criminalizar pessoas, nem confiar na “justiça burguesa” para resolver o caso, mas sim
“fortalecer o movimento estudantil e reafirmar que esse tipo de prática nunca deve ser normalizada.”
Para sustentar sua narrativa, o documento apresenta prints de conversas do grupo Executivo da gestão, áudios da ligação com o dono da empresa transportadora que confirmariam o repasse legal, comprovantes de pagamento e gravações do CEB, que apresentam as supostas contradições discursivas do Correnteza.
De forma clara: o Afronte notou algo estranho no orçamento de um serviço padrão na entidade; consultou o contratado e uma equipe jurídica; solicitou espaço no CEB e fez a denúncia de três tentativas de crime.
Ao longo do documento, a postura do Correnteza é enquadrada como perniciosa, oportunista, além de confusa e cheia de justificativas falhas. Um dos argumentos mais fortes do Afronte e que sustenta sua retórica é de que “se não havia nada de errado, por que não houve comunicação?”.
A resposta
No dia primeiro de maio, três dias após a publicação do dossiê, chegou ao nosso conhecimento o documento com a resposta oficial do Correnteza. Com três páginas, ele é ágil em apresentar a sua própria versão dos fatos, denunciando nas primeiras linhas uma
“tentativa de golpe ao DCE da UFMG, que se deu através de uma série de ataques do Afronte ao Movimento Correnteza, que levaram ao encerramento da gestão do DCE no último CEB.”
Segundo o movimento, toda a denúncia seria, não apenas descabida — visto que teriam sido apresentadas provas da natureza emergencial do orçamento — como também fariam parte de uma estratégia de desgaste político por parte do Afronte.
As acusações começam apontando que desde a posse, a gestão da Ponta de Lança era desigual, pendendo para o lado do Afronte (que forma maioria), que mais de uma vez teria sitiado a participação dos outros movimentos na elaboração das políticas da gestão.
Essa exclusão política se estenderia para o controle financeiro da Entidade, que segundo o documento, estava sob controle exclusivo do Afronte e sua tesouraria, com acesso negado à tesoureira do Correnteza. Seria, então, uma gestão que operava de forma opaca, sem prestação de contas e nem acesso à conta institucional.
Todo o caso que acompanhou a denúncia durante o CEB, inclusive o encerramento da Ponta de Lança, teria sido causado por uma guinada política do Afronte, que teria abandonado sua postura combativa e passado a adotar um discurso conciliador com o Governo Federal e outras instituições. Esse comportamento estaria evidente na omissão frente à cortes na educação, uma postura permissiva frente à falta de bolsas, obras paradas e diversas precariedades dentro da UFMG.
Também foram expostas no documento divergências políticas entre todos os movimentos da Gestão. Supostamente o Correnteza e o Juntos teriam defendido a ampla participação de estudantes da UFMG no CONEG para fortalecer a democracia estudantil, porém o Afronte teria sido contrário à levar um grande número de estudantes, preferindo levar apenas os delegados (o que seria prejudicial ao debate, visto que nem mesmo a diretoria do DCE poderia participar em completude).
O Correnteza afirma, inclusive, que o Afronte em outras oportunidades teria se oposto ao voto secreto nas eleições da União Nacional dos Estudantes. Em sua pontuação mais polêmica, o documento define essa movimentação como uma preferência do Afronte pela diminuição na democracia da entidade para centralizar mais poder em si.
O documento encerra sua argumentação rejeitando a suposta “política de gabinete” e convocando os estudantes à uma reconstrução ativa e mais consciente da Entidade.
Ao longo da leitura, eles apresentaram como provas dois áudios de conversas com o dono da Transpimentel, supostamente derrubando a acusação de roubo e esclarecendo a confusão, junto de uma série de prints tirados pela tesoureira do Correnteza, expondo sua dificuldade de se comunicar com a gestão do coletivo e com o tesoureiro do Afronte.
Ou seja, o Correnteza alega que não apenas a denúncia não tinha fundamento, como também era uma estratégia política do Afronte para destituir a gestão, mediante à um afastamento do ativismo político do mesmo. A conclusão desse movimento “golpista” foi então o encerramento da gestão, cinco meses após sua posse.
As contradições:
Esses dois documentos foram elementos chave para darmos início à nossa apuração, que nos levou a conversar com representantes de ambos os movimentos, militantes, além de testemunhas da CEB que corroboram alguns dos discursos de ambos os lados, assim como nos ofereceram uma visão terceira dos desdobramentos daquela noite. Ao fim dessa reportagem, iremos disponibilizar os dois textos na íntegra.
Ao longo dos documentos, assim como nas entrevistas que conduzimos nos últimos dias, os dois lados se escoram em suas verdades ao mesmo tempo em que, em conjunto, destacam também as suas próprias contradições.
Nos parece verdade que o Correnteza tenha apresentado ao menos três narrativas para explicar a natureza do pedido de 12 mil reais. O discurso unificado que dá o tom de seu documento de resposta, e que enfatiza que o valor excedente seria para custear a urgência do pedido com a contratação de um motorista terceirizado, só apareceu com consistência em um segundo momento. Para uma representante do Correnteza, essas contradições não existem:
… o que eu vi das versões foi sempre a mesma, de que primeiro, a gente não estava fazendo uma tentativa de caixa dois, mas que isso estava relacionado com uma dificuldade de comunicação com o dono da empresa. (...) E que o pacote dos 2000 é para que pague o trabalho do motorista, mão de obra e a hospedagem. Então, não entra em contradição…
Ainda sobre o valor, o Afronte alega na conclusão de seu documento e em outras oportunidades que nenhuma explicação foi dada, porém, um print divulgado pelo próprio Afronte dá a entender que o valor excedente foi exposto pelo Correnteza:
O Correnteza também afirmou em entrevista que duas notas fiscais seriam feitas, uma para o motorista e outra para o serviço da Transpimentel, tornando impossível uma tentativa de desvio. Segundo o Afronte, essa informação nunca teria chegado até eles.
Mesmo assim, o Correnteza parece desviar-se do assunto dos dois mil reais, concentrando-se no discurso da tentativa golpista e no estratagema político do Afronte para desmobilizar a gestão.
Sobre essa posição, uma das líderes do Afronte nos diz que não há cabimento e, se fosse o caso, a estratégia teria sido outra:
“se a gente quisesse dar um golpe político, a gente teria ido para as redes sociais. A gente não teria ido para o conselho de identidade de base, a gente teria chamado uma assembleia geral direta.”
É impossível deixar de fora o controle das operações financeiras do DCE, que, como já apontado pelos dois movimentos, está centralizada na conta pessoal do tesoureiro do Afronte, o Primeiro Tesoureiro da gestão, devido à irregularidade do CNPJ da Entidade. Em condições normais, a gestão é composta por duas tesourarias, que dividem as responsabilidades, assim como mantém um controle transparente das movimentações do caixa.
Desde o início da Gestão (...), a conta ficou no CPF do primeiro tesoureiro. As movimentações sempre foram feitas de acordo com os debates da executiva da entidade como demonstrado no anexo a seguir. Conseguimos regularizar o registro da última gestão do DCE em cartório, mas essa ainda está em processo. Nesse sentido, o CNPJ ainda não está ativo para essa gestão, para que fosse criada uma conta financeira em nome da entidade.” (DOSSIÊ AFRONTE)
Essa participação equilibrada sobre o controle orçamentário nunca teria acontecido, nos confirma a tesoureira do Correnteza, assim como uma fonte externa. Em diversas ocasiões, a comunicação entre os tesoureiros era inexistente, e a participação do Correnteza era reduzida. Tudo indica que não há também nenhum controle financeiro detalhado das movimentações da entidade. Mesmo a denúncia, durante o CEB, foi feita com a impressão do extrato bancário da conta do tesoureiro, com pouquíssimas informações sobre a finalidade dos valores de entrada e de saída.
…era o extrato dele de dezembro até um pouco antes do feriado, em que você tinha tipo assim, todas as entradas e saídas. Tinha a data, tinha a hora, tinha o valor e era isso, acabou. (Testemunha do CEB)
Supostamente teria sido proposto, meses atrás, a criação de uma conta compartilhada entre os dois tesoureiros em outro banco, alternativa defendida pelo Correnteza e o Juntos, mas que teria sido rejeitada pelo Afronte. Segundo eles, essa proposta apareceu apenas algumas semanas antes da viagem.
Cabe destacar também que a postura dos dois movimentos vem sendo a de articular novas acusações, como mau comportamento, manipulação dos fatos, narrativas contraditórias, falta de transparência e aproveitamento da polêmica para arrecadação de capital político. A postura hostil de ambos os lados gerou inclusive desavenças durante as eleições para o DA da FAFICH, na última semana, descrita como “uma eleição violenta”, por uma integrante do Afronte.
Os dois cobram transparência, mas também os dois oferecem provas inconclusivas, principalmente as conversas com o dono da transportadora, que caiu no meio do cabo de guerra discursivo e é acusado à revelia. Os dois apontam manobras políticas complexas e jogam as custas de toda a discussão sobre as costas exaustas da política nacional. E para ambos, o comportamento do outro compromete a estrutura, gloriosa no passado, do Movimento Estudantil, tirando o foco de suas verdadeiras lutas.
As conclusões:
A denúncia é grave o bastante para descredibilizar um dos maiores coletivos do Movimento Estudantil do país dentro de uma de suas maiores e mais relevantes universidades. Além, é claro, de que o ruído que se gera em torno do caso (incluindo essa matéria), serve em algum lugar para desgastar a imagem que se têm do DCE e outras entidades. Em uma era onde a juventude parece corroída pelos excessos discursivos imateriais, a desconfiança em nossas próprias articulações é tudo que não precisamos para uma coletividade política poderosa.
Porém, nesse toma lá, dá cá de farpas e muito rancor, parece que nunca foi sequer ensaiada uma tentativa dialética para resolver o possível desvio de dinheiro. Tanto a apresentação pública da tentativa de desvio quanto também as respostas acaloradas e nada razoáveis, foram um esboço do que há de mais imaturo nesses movimentos. Uma aula de como não conduzir uma gestão de crises.
Na briga para ver quem fala mais alto, os dois movimentos performam uma disputa narrativa que vai muito além dos dois mil reais — e de alguma forma, das lutas do ME. Através do verniz do debate (que teve pouco ou nada de dialético), as desorganizações dentro da gestão, e as lacunas em seu processo organizacional se revelam. As duas mais graves são seu controle financeiro atrapalhado e secreto, e também uma política silenciosa e mal feita de registro das ações internas. Se existem registros oficiais das movimentações financeiras da Entidade e também registros de seus encontros, reuniões e atividades, não nos foi disponibilizado e nem encontramos durante a apuração.
Cada um dos lados contou uma meia história, com efeito nunca de esclarecer o ocorrido e nem construir diálogo. O resultado implacável e infeliz dessa hiperbólica crise interna foi a dissolução informal da gestão Ponta de Lança. O DCE segue hoje sob condução do Afronte e o silêncio do Movimento Correnteza e do Juntos.
Uma vez mais o Movimento Estudantil treme sob ruídos internos, ocasionados talvez por discordâncias políticas, talvez por má fé, ou talvez, por um inacreditável mal entendido.
Para preservar a identidade dos envolvidos e também responsabilizar os coletivos (e não as pessoas), a reportagem escolheu ocultar os nomes de todas as nossas fontes, assim como seus cargos específicos dentro das organizações.
Para mais informações sobre o caso, leiam os documentos divulgados pelos movimentos na íntegra:
Créditos:
Editoria e Revisão: Gabriel Barcelos e Gabriel Martins
Gostei da reportagem e das reflexões, mas infelizmente, e não por culpa de vocês, a questão ainda está em aberto
Matéria de gente grande, pessoal... parabéns.
Como vocês falaram, esse desgaste criado abala muito a nossa fé nesses movimentos como estudantes. Ao mesmo tempo que é difícil se colocar no lugar de cada parte num assunto tão delicado, fica mais difícil ainda acreditar em alguma coisa no meio de tanto desvio de informações.
Creio que já aprendemos que a verdade não está aí solta pelo mundo esperando para ser descoberta; tudo é um confronto de narrativas. E sinto que vocês traduziram isso muito bem. Mas, mesmo concordando com o que vocês colocam, parece que essa história do dinheiro realmente ficou muito pequena frente à desunião de pessoas que poderiam fazer muito para mudar nossa realidade. Muitos falam em olhar para trás para resgatar glórias ou olhar para frente e comprar a proposta de um futuro brilhante, mas sacrificam o agora sem pestanejar. E no fim das contas, nossa vivência na faculdade é curtíssima, então o agora é que mais deveria ser mobilizado.
Agradecemos muito a dedicação de vocês para detnrar abordar isso da melhor forma, mesmo sendo possível ver a enorme dificuldade que deve ter sido. Abraço!