

Por Ana Moyen
Faux-bourdon é uma palavra francesa que significa “falso bordão”. Ela é usada pelos franceses para descrever aquilo que é insosso, monótono e fora do tom. Ironicamente, ela também é a palavra que, algumas camadas etimológicas depois — “farbodão”, do português de portugal, e “forbodó”, do galego — daria origem à “forrobodó”, parente descomprimida de “forró”.
Se forrobodó significa simplesmente “baile popular” (ou “baile reles, de gente ordinária” segundo algum linguista mal amado de 1930), o forró é um pouco mais nosso. Música nordestina, dança a dois e sinônimos auto-explicativos como rala-bucho, bate-coxa e ariar a fivela caracterizam oficialmente a dança/festa/gênero musical que surge no sertão pernambucano. Com Luiz Gonzaga, o forró desce pro sudeste e adquire os contornos do baião. Alceu Valença acrescenta guitarras e bateria e, mais tarde, grupos de forró dos anos 90 espalham a palavra.
Se o forró é destrinchado entre pé de serra, eletrônico e universitário, reduzido a uma festa da ralé, exaltado como uma manifestação cultural ou originado de uma palavra francesa metida a besta, pouco importa. Toda quarta-feira, independentemente de qualquer definição, estudantes da UFMG e agregados se reúnem sob a lona circense da praça de serviços para dançar forró das 17:30 às 19 e pouco. Não necessariamente se conhecem ou sabem dançar, nem chegam ou saem dali acompanhados, mas são unidos pelo objetivo comum de arrastar-pé no meio da semana e isso é mais que o suficiente.
Em meados de abril, quando o calor não sabe se vai ou se fica e as águas de março voltam para um segundo round, o forró da praça de serviços está a todo vapor. Pés de valsa qualificados procuram alguém para chamar para dançar, alguns deles identificados por camisetas brancas e vermelhas que se assemelham à lona da praça. Outros monitores vestem camisas amarelas com os dizeres “pó dança concê?” nas costas, que premeditam o pedido inevitável daqueles que circundam o palco central buscando contato visual com alguém na plateia. Sentada na arquibancada, olho fixamente pro meu caderno e pra minha caneta até escolherem outro alguém. A música recomeça.
Só um dos holofotes está ligado essa noite, cortando o palco ao meio num feixe quente e dramático. Do escuro saem duas pessoas, uma monitora e um rapaz alto, com cara de gringo. Eles dançam em passos pequenos e rápidos, girando com precisão. Fazem movimentos avançados, que os monitores só fazem quando dançam com outros monitores, apesar de ele não estar identificado pela camisa. Ela entra e sai dos braços dele com facilidade e, por mais que esteja sendo guiada, parece ditar o ritmo da dança.
Ao lado, dois amigos dançam lento e meio separados, com quase dois braços de distância entre si. Unidos somente pelas mãos espalmadas em frente ao corpo, como mímicos parisienses, eles vão e vêm, um pouco atrasados, e mais conversam do que se movem propriamente. Estão rindo quando um foguete de blusa rosa passa por eles, abrindo os braços longos e girando uma garota feito um peão. Ele abre e fecha os braços, junta as mãos com as dela e faz um movimento por cima da cabeça de ambos, como uma ponte, sem nunca parar de mover os pés. Tenho amigas do meu lado que me dizem que ele é um frequentador recorrente, e que dá aulas de forró a domicílio. Elas o chamam de Caneta Azul, porque é alto, magro e está sempre de calça jeans azul vibrante, mas pelo visto o nome dele é Márcio. Pela forma como risca a pista, chego a pensar que “Caneta Azul” faz mais jus às suas habilidades do que “Márcio”. A música acaba e o par de amigos lentos e risonhos se separa. Um monitor cabeludo proficiente chama a garota para dançar, enquanto o garoto faz par com a monitora que antes dançava com o gringo, sem muito entusiasmo.
Das pessoas novas que decidem subir na plataforma central pra próxima dança, duas usam blusas da ciência da computação, uma verde e uma rosa. Elas se dão um abraço tímido e começam a se mover no ritmo aos pouquinhos. A de rosa se afasta e olha para os pés, que ficam trombando e pisando um no outro. Estão usando tênis similares e parecem confusas sobre qual pé pertence a quem. A de verde balança a cabeça e começa a guiá-la, sem muita habilidade. Quando as duas voltam a se abraçar, a de rosa enfia o rosto no ombro da outra para esconder um sorriso e amassa as costas da blusa com o aperto da mão trêmula. Dois pra cá, dois pra lá, um giro lento de 180 graus e vejo que a de verde está fazendo exatamente a mesma coisa.
No canto, observando, está outra dupla num relacionamento indeterminado. Eles parecem ponderar se vão subir na plataforma ou não. Ela se equilibra na beirada, com seu all star azul, e ele se apoia no palco com um dos pés, deixando o outro no chão. Fazem comentários a respeito de quem está dançando, apontam para monitores e cruzam os braços atrás das costas, se balançando nos calcanhares, evitando contato visual um com o outro. Quando os dois finalmente sobem, a música acaba. Outra começa e eles se encaram com expectativa. Por um segundo acho que vão começar a dançar, mas ele desce da plataforma. Hesitando por um instante, ela fecha a barra da blusa larga num punho, segue pra arquibancada, pega a mochila e corre pro banheiro, deixando-o sozinho. Não consigo falar sobre eles sem ser hipócrita, então não vou.
De volta pro palco, o gringo e a monitora dançam juntos de novo, dessa vez mais lento, mais simples e mais perto, bem no meio da pista. Atravessados pelo feixe de luz, ela quase flutua na ponta dos pés, deixando que ele a guie de verdade dessa vez. A sincronia é tão perfeita que parece que as outras danças até então tinham sido só um passatempo até eles voltarem um pro outro. O amigo, do par lento e risonho de antes, também encontrou um parceiro que realmente o faz querer dançar: um estudante de farmácia com a cabeça raspada e um cavanhaque. O balanço dos dois tem muito mais ritmo do que as cinco últimas parceiras do rapaz, e eles estão, de fato, coladinhos. Um garoto de blusa branca também dança coladinho com uma menina de regata, mão na nuca e tudo, e é tão íntimo que vou ficando sem graça e procuro outro sujeito para escrever a respeito. Meus olhos pulam para uma atleticana que treme as pernas contra o joelho de um dos monitores (daí o nome bate-coxa, imagino) e, de repente, tudo me parece muito cheio de duplo sentido. Me sinto criança de novo.
A primeira vez que me lembro de dançar forró (e não só mexer os pés de mãos dadas com minha vó numa festa de família) foi numa aula de educação física no nono ano. A semana anual que minha escola dedicava à dança era aguardada por todos com muita ansiedade e hormônios adolescentes, porque era uma desculpa pra passar dois horários de mãos dadas com alguém. A pessoa que eu tinha em mente já tinha um par, então passei meu horário dançando com um menino que encostava em mim como se minha pele fosse feita de formigas e eu tivesse um bafo do cão. Olhando pras pessoas no forró da praça de serviços, nenhuma delas parece ter essa convicção a respeito umas das outras ou de si mesmas, mas eu terminei a aula convencida de que pelo menos uma daquelas afirmações era verdadeira. Deve ser por isso que elas dançam bem melhor que eu.
Sou mais das palavras. Li recentemente um artigo de uma universidade australiana que atestava que a dança é o exercício físico mais eficiente para atenuar sintomas da depressão. Também li em um livro uma vez que expressões de alegria corporal são importantes precisamente porque nos fazem prestar atenção naquilo que nos priva delas. Assim como gritar acentua os momentos de silêncio, dançar destaca os momentos parados e as circunstâncias que te exigem estático, distante. Te atenta para situações ou pessoas (nem que essa pessoa seja você mesmo) que te fazem esquecer que você tem um corpo e que ele tem partes articuláveis, táteis, que ocupam um espaço físico no mundo. Nesse sentido, dançar é bem político, focaultiano até, mas talvez eu só esteja tentando dar importância acadêmica a algo que já é importante por si só. Sob o risco de soar como a negacionista que tocou a primeira trombeta do apocalipse anti-intelectual: tem certas coisas que não precisam ser lidas num livro ou num artigo, muito menos escritas em uma crônica, e o forró certamente é uma delas — basta ver as pessoas dançando para perceber.
“Oh! Chuva”, do falamansa, estoura nas caixas de som, abafando o som da chuva de verdade do lado de fora. Acabou o espaço na folha do meu caderno e é quase hora da aula, então me levanto e vou embora num esforço consciente de quebrar o hábito de especular sobre a vida das outras pessoas pra não ter que viver a minha. Quem sabe semana que vem eu não pare de ter medo de descobrir que eu existo e volte aqui pra dançar um forrozinho?
Editoria: Alice Pimenta
Revisão: Gabriel Barcelos
Capa e design para redes: Carolina Cerqueira
Devia ter dançado!