É possível estudar com fome?
Evento organizado por movimento estudantil na moradia universitária expõe e debate insegurança alimentar na UFMG
Por Rafael Silva
No dia 25 de maio foi realizado o Banquetaço: almoço coletivo organizado pelo Afronte e residentes da moradia universitária com intuito de trazer à tona o debate sobre insegurança alimentar na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A ação teve como objetivo chamar atenção para a insegurança alimentar vivida por estudantes da instituição, especialmente nos fins de semana e feriados, quando não há assistência estudantil completa.
O evento contou com a presença do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), que participou de rodas de conversa sobre o tema, reforçando a importância da mobilização coletiva para transformar o cenário nutricional nas universidades. O cardápio incluiu galinhada e salada de feijão-de-corda, além da venda de refrigerantes organizada pela própria gestão da moradia. A refeição foi possível graças à colaboração entre movimentos sociais e estudantis, com destaque para a doação de arroz feita pelo MTST.
Durante a semana, os Restaurantes Universitários (RUs), também conhecidos como “bandejão" ou “bandeco”, oferecem café, almoço e jantar aos estudantes da Universidade. Nesse período, a comunidade no geral só não tem direito ao desjejum, pois ela é disponibilizada gratuitamente apenas para ‘fumpistas’ níveis I, II e III – classificação realizada pela Fundação Universitária Mendes Pimentel (Fump) para estabelecer quais estudantes apresentam maior índice de vulnerabilidade socioeconômica, em que o nível I é o que apresenta “maior risco de evasão” e o nível IV-B é o que apresenta menor probabilidade de desistência por fatores financeiros.
Aos sábados, o restaurante fica aberto entre 11h e 13h, intervalo menor quando comparado aos dias da semana – de segunda a sexta os RUs abrem no mesmo horário, porém fecham às 14h. O tempo reduzido implica em uma superlotação do espaço, longas filas e ausência de comida ao final do período. Todas essas problemáticas colocam os funcionários do bandejão em uma situação delicada e estressante, de forma a ser corriqueira as reclamações de quem está a serviço da Fump, responsável pelo Programa de Alimentação na UFMG, por melhores condições de trabalho nos restaurantes.
Banquetaço no centro do debate
A ideia de um bandejão auto-organizado foi inspirada em um movimento da Universidade de Campinas (Unicamp). Lá, estudantes da moradia produziram refeições para os discentes, além de lutar por refeições aos finais de semana nos RUs da instituição. A Unicamp alterou a política de assistência estudantil e hoje os bandejões oferecem alimentação aos sábados e domingos.
Na UFMG, a iniciativa de oferecer refeições aos moradores começou em 2024. No período, a gestão que representava os estudantes nas moradias universitárias se juntava aos moradores para realizar dinâmicas e jogos como meio de recreação entre os residentes, e contava com lanches no decorrer das atividades.
“A gente percebeu que nos eventos que a gente fazia comida, aparecia bastante gente, mesmo que às vezes a galera só aparecesse lá, comesse e fosse embora. Para nós, não havia problema. Já tínhamos identificado esse problema – insegurança alimentar – por estarmos inseridos nesse contexto. Mas a partir de conversas, observamos um cenário problemático.” afirma Eduardo.
Eduardo Lima é formado em pedagogia na UFMG, atuou como representante discente da moradia universitária e comenta sobre o processo de desenvolvimento do projeto de alimentação para os moradores.
“Começamos a trazer a alimentação de fato. Então, todos os eventos maiores que a gente realizava, tentávamos trazer um almoço mesmo. Isso começou a ser a nossa prioridade no lugar de fazer um simples lanche. Percebemos que a galera estava aparecendo mais quando tinha comida”.
A faculdade fornece auxílio aos estudantes assistidos pela Fump, mas nem sempre o valor é suficiente para que consigam se sustentar. Muitos discentes apresentam um estado de vulnerabilidade maior, impondo um gasto financeiro além da demanda da alimentação, como gastos com estadias e transporte. Sem contar que as moradias universitárias não alojam todos os alunos atendidos pela fundação, de modo a existir aqueles que dependem do serviços dos restaurantes universitários para se manter aos finais de semana, Dessa forma, alguns estudantes tinham – ou ainda têm – de adotar algumas estratégias para se alimentar minimamente aos finais de semana.
“Antigamente eu tinha que fazer marmitas escondido no bandejão, já que comprar qualquer coisa era inviável. Juntar as contas da mudança para Belo Horizonte, aluguel e alguns outros itens essenciais acabava que não sobrava pra comida (...).” afirma João Pedro*.
João Pedro (nome fictício) tem 23 anos e estuda química na UFMG. Oriundo da cidade de São Paulo, passou por alguns perrengues financeiros para se manter na universidade, de forma a ser um dos alunos que tiveram que adotar o malabarismo financeiro para conseguir se manter vivo durante o mês.
“Tinha que me planejar o máximo possível em feriados prolongados, em que às vezes eu não poderia gastar nem 10 reais em uma única refeição, quiçá em 8 refeições (as oito refeições fazem referência aos feriados prolongados de quatro dias).” alega o estudante.
João Pedro cita duas coisas na entrevista que não são experiências individuais: o ato de fazer marmitas no bandejão e também a problemática dos feriados prolongados para quem depende do restaurante.
No bandejão, aos sábados, é bem comum presenciar pessoas com vasilhas preparadas para enchê-las na primeira oportunidade, pois não é permitido pela fundação que os alunos montem marmitas. Em mais de uma ocasião observamos pessoas foram impedidas por algum funcionário da Fump. O próprio João Pedro nos relatou que uma nutricionista o ameaçou após reconhecê-lo novamente na fila, alertando que, em caso de reincidência, ele teria o seu nível retirado.
A outra problemática são os feriados prolongados que aumentam os dias em que o bandejão da universidade está fechado, chegando até a quatro dias sem qualquer alimentação nos restaurantes universitários, como aconteceu nos feriados de 18 a 21/4. Pauta também reivindicado pelo movimento estudantil para com a UFMG no evento do dia 25/5.
“A ideia é reforçar mesmo e chamar atenção da instituição sobre esse problema da insegurança alimentar [...], mas também tivemos vários feriados prolongados e que a galera de fato passou fome, não só aqui na moradia, mas fora dela também, porque é isso… Se para galera que está aqui na moradia que tem essa segurança de um teto, já é difícil de pensar no que comer no outro dia, agora imagina quem precisa de pagar aluguel.” afirma Lorrayne Lourença.
Lorrayne Lourença é estudante de Gestão Pública na UFMG, fez parte da última gestão do Diretório Central dos Estudantes (DCE) e é membro atuante do Afronte. Ela, assim como João Pedro, relembra a questão dos feriados prolongados, que impõe ainda mais a necessidade de realizar conversas e debates sobre a importância do tema, além de reforçar a importância do bandejão auto-organizado para os estudantes.
“Tentamos o apoio da Fump para conseguir os alimentos, para fazermos uma refeição todo final de semana. Não ia ser para muita gente, até porque não temos equipamentos, não temos estrutura para fazer comida para muita gente. Tínhamos a intenção de fazer para quantas pessoas fossem possível, que era ali uma média de 150 pessoas.” enfatiza Eduardo.
No final, a Fump negou o apoio solicitado pelos estudantes, com a justificativa de que não havia verbas o suficiente para essa finalidade. Os discentes tiveram que colocar a mão na massa e lutar por doações para fazer o bandejão ficar de pé. De setembro de 2024 a maio deste ano, o pessoal conseguiu se organizar para disponibilizar alimentação para os residentes da moradia, justamente com doações e arrecadações da gestão do espaço.
“A gente ficou nesse trabalho mais ou menos até o começo do mês de maio (2025), quando meio que nossa última verba acabou. O número de doações que temos recebido tem sido muito baixo, tanto financeira, quanto de doação de produtos. Isso tornou muito complicado a gente viabilizar as refeições” finaliza Eduardo.
A gestão da moradia está a disposição para a retirada de quaisquer dúvidas sobre doações em sua página do Instagram @moradiasufmg.
Limite de repasses do governo federal para as Universidades
O Governo Federal publicou um decreto que alterava a forma de distribuição de recursos para as universidades federais do país,segundo divulgado pela CNN em abril deste ano. O Ministério da Educação (MEC) realizava o pagamento mensal para as instituições de ensino, e com esse novo acordo, o dinheiro seria entregue de forma parcelada: a primeira seria realizada no mês de maio, a segunda seria lançada em novembro e a terceira em dezembro.
Com isso, as Universidades Federais teriam que realizar cortes de gastos, de modo que as políticas de assistência estudantil, como bolsas de permanência e até mesmo o funcionamento dos RUs ficaria comprometido. A comunidade acadêmica se mobilizou para questionar essa mudança orçamentária estabelecida pelo MEC. A pasta voltou atrás nessa medida e anunciou um novo investimento nas instituições de ensino.
O que diz a UFMG e a Fump?
Realizamos contato com equipes responsáveis na UFMG e Fump, mas não tivemos retorno até o momento. O espaço permanece aberto para manifestações.
um dos maiores casos de negligência que nos acompanha na universidade. ainda bem que existem pessoas que se esforçam para mudar isso, mesmo com pouqíssimos recursos para isso. e vocês são parte disso! parabéns pelo trabalho, pessoal.