Cultura pop como catalisador de uma neurose
Crítica de ”O Mistério de Silver Lake” (2018)
Por Davi Reis
Em menos de 20 minutos, “O Mistério de Silver Lake” (2018) já nos apresenta tudo que precisamos saber sobre Sam (Andrew Garfield): um adulto desempregado de trinta e poucos anos que mora em um apartamento grande na cidade de Los Angeles e está prestes a ser despejado. Durante uma noite tediosa, o personagem acaba conversando com Sarah (Riley Keough), uma vizinha que sempre observa com seus binóculos. Após rolar um clima entre os dois, a loira o convida para sua casa, porém, quando estão prestes a terem uma noite calorosa, surge um imprevisto que faz com que Garfield precise ir embora da residência.
No dia seguinte (e com a típica postura otimista de um homem hétero solitário que recebeu atenção de mulher bonita), o personagem de Andrew Garfield bate na porta da moça, mas percebe que, durante a madrugada, o apartamento foi esvaziado e os moradores foram embora. Confuso, o protagonista vai perguntar se aconteceu alguma coisa específica com Sarah ao locador, que responde:
Eles se mudaram! Como assim isso não faz sentido?
Inconformado, Sam começa a achar que o sumiço da moça faz parte de uma grande conspiração que envolve a morte de um bilionário influente e, para tentar resolver esse suposto mistério, o personagem de Andrew Garfield vai buscar significados ocultos nos filmes de Alfred Hitchcock e Don Siegel, nas músicas da banda fictícia “Jesus and the Brides of Dracula” e nos jogos de NES (Nintendo Entertainment System) que vive rejogando.
E a partir de todas essas informações apresentadas em menos de ¼ da duração do longa de Mitchell, é possível perceber uma coisa: Sam é incapaz de lidar com o fato de Sarah simplesmente ter ido embora sem lhe dar qualquer satisfação. Para ele, não há qualquer possibilidade de que o sumiço da moça não faça parte de uma armação mirabolante, e a busca por uma resposta satisfatória ao seu desejo pela intriga é o que gera todas as imagens de Silver Lake.
As pistas que surgem a partir dessa perquisição não passam de hiper estímulos incapazes de preencher o vazio no coração de Sam. Mitchell sempre faz questão de mostrar que o vício em cultura pop do personagem acaba intensificando a sua postura obsessiva. O fato da história se passar em Los Angeles faz com que o espaço do filme sempre enfie mais referências culturais, o que deixa Andrew Garfield cada vez mais obcecado com o mistério, o que desencadeia num momento que ele começa a enxergar Los Angeles no mapa do game “The Legend of Zelda” (1986).
Mas todo esse “cercamento” de imagens da cultura pop no qual o personagem se encontra me levou a um questionamento: O personagem está condicionado a ser neurótico por estar projetando as narrativas de filmes, jogos e quadrinhos na vida real ou a ficção é a linguagem que ele usa para compreender o mundo ao seu redor e lidar com suas neuroses?
Por um lado, Sam passou a vida toda consumindo narrativas que mostram heróis participando de jornadas grandiosas, como Link nos jogos de The Legend of Zelda e Charles Farrell em “7th Heaven”; ou então escutando músicas de figuras famosas como Kurt Cobain. Nesse caso, seria essa vontade de viver algo parecido com essas grandes estórias que o faz estar condicionado a querer buscar isso em sua vida mundana?
Em contrapartida, a personagem de Garfield está claramente afetada com o sumiço de Sarah, haja vista que ela seria uma novidade em sua vida monótona. Nesse contexto, o personagem acaba se libertando da rotina tediosa ao ficar obcecado com o mistério que dá nome ao filme. É como se a ficção e sua obsessão pelo paradeiro da loira o permitissem viver aquilo que Giles Deleuze e Félix Guattari chamam de “passeio do esquizofrênico”, que libertara Sam das amarras sociais e faz com que o mesmo consiga lidar melhor com seu sofrimento.
Ao partirmos dessa reflexão sobre a relação do personagem fictício com os signos da indústria cultural, surge um outro questionamento que ultrapassa a barreira do objeto fílmico: Não estaria o próprio David Robert Mitchell agindo da mesma forma que Sam no gesto de produzir seu filme?
O diretor se embebeda de vários elementos dos trabalhos mais conhecidos de Hitchcock; como a figura do homem voyeur (que passa por um processo de deterioramento mental conforme vai se aprofundando no mistério), a loira misteriosa que instiga o protagonista, e os planos abertos bem simétricos e com alta profundidade de campo pensados a partir de storyboards; escolhas que dialogam com filmes como “Intrigas Internacionais” (1959) e “Um Corpo Que Cai” (1958).
Indo além desse diálogo com a obra do britânico, há a cena em que Sam chega na mansão do personagem The Songwriter – o sujeito que, no universo do longa, compôs todas os hits dos últimos 50 anos – na qual em menos de 5 minutos, são tocadas músicas de Backstreet Boys, Nirvana, Pixies e Ritchie Valens, o que reforça o fascínio do diretor nesses clássicos da música norte-americana.



Portanto, navegar por esse emaranhado de referências de filmes, jogos, quadrinhos e músicas para contar essa história não o faz ser tão escravo da indústria cultural norte-americana quanto o personagem paranoico de seu thriller?
São essas contradições, esse amontoado de perguntas sem resposta e a incapacidade de Sam em lidar com a perda de uma possível namorada que fazem O Mistério de Silver Lake ser um longa que vai muito além de uma releitura estética da obra de Hitchcock. É um filme que volta para as imagens de Intrigas Internacionais e Um Corpo Que Cai com o objetivo de colocar em crise a relação do indivíduo com as mídias que ele tem contato desde o momento de seu primeiro respiro.
É como se David Robert Mitchell discursasse contra a cultura pop, pois a enxerga como um pesadelo, um estorvo para a individualidade humana, ao mesmo tempo que, se afaga nas referências e ferramentas oriundas dessa perversa indústria da cultura para contar sua história.
Nota: 4/5
Editoria e Revisão: Gabriel Barcelos