As Lentes da Fúria de um Artista em Movimento
Link do Zap impressiona pela honestidade cruel de suas canções e a redescoberta do próprio potencial
Por Gabriel Martins
Com uma trajetória que teve início no SoundCloud, Kalledy (como é majoritariamente conhecido por seu público) da Hora Yakel, com a alcunha de Link do Zap, começou a produzir beats e rimar ainda aos 14 anos, em 2017. O nome inusitado do jovem capixaba, ao contrário do que muitos imaginam, não tem relação com o aplicativo de mensagens. Na verdade, surgiu de uma piada entre colegas na época da escola e que ao adotar como nome artístico, o cantor responde diretamente em suas letras as críticas pelo nome que escolheu:
“Eu escolhi um nome tão imbecil
Porque não quero que olhem para minha cara nem meu nome
Eu quero que olhem pra minha arte
E é claro que cê não entendeEu não vou prolongar o debate
Só quero que tu se foda”Letra da música “Eu Posso Ser Deus”
O rapper em ascensão já acumula 63 lançamentos, sem contar suas diversas colaborações, que consolidam seu nome no cenário underground. No entanto, foi em janeiro de 2025 que Link finalmente rompeu a bolha. Sua canção “A Última Dança” viralizou inicialmente com edits no TikTok e, rapidamente, alcançou públicos que até então desconheciam seu trabalho. Atualmente, a faixa soma mais de 38 milhões de reproduções no Spotify e está presente em mais de 33 mil vídeos na plataforma. Para muitos, esse foi o ponto de virada em sua carreira. Mas, na verdade, uma transformação ainda mais profunda já havia acontecido antes.
A Frontalidade da Melancolia de Kalledy
Lançado em 2024, o EP Kalledy marca uma virada na trajetória artística do cantor, abordando temas profundamente íntimos desde sua concepção. O trabalho carrega trechos inteiros de uma carta de suicídio escrita por ele próprio, incorporados nas letras das músicas, e expõe com crueza suas angústias pessoais. Ao longo do EP, Kalledy revisita memórias do passado enquanto expressa frustração com o rumo atual de sua vida. A obra contrasta fortemente com suas produções anteriores, marcadas por um estilo shittrap mais irreverente e distante de reflexões pessoais.
Para Kalledy, essa mudança veio após o lançamento de “Dói”, em 2023.
“Mesmo caindo, ainda sou uma estrela
Não vai ser meu ano
Não vou sair da lama
Escuta eu cantando
Na multidão ninguém ouve meus gritos
Mas eu tô gritando
Não queria essa fama
Sempre tô fumando”
Letra de “Dói”
O que se destaca em suas músicas é a maneira como ele trata as próprias angústias consigo ou com o mundo, apesar do sofrimento, a melancolia não é uma opção. Suas dores são afirmadas com raiva e aceitação, como se batesse no peito e admitisse tudo que acredita ser negativo sobre si. Em entrevista exclusiva a RU3, feita antes do show em Belo Horizonte no dia 22/06, Link fala sobre essa mudança súbita nas temáticas que trabalha:
“Eu acho que quando você vai falar de umas questões íntimas assim, tem uma linha muito tênue entre você estar sendo sincero e você estar sendo um coitado [...] Eu acho que ‘Dói’ foi a primeira música em muito tempo que eu consegui cantar umas paradas muito íntimas, mas sem ficar uma parada meio coitadismo”
Como resultado, Kalledy entregou exatamente o oposto de um discurso vitimista. Em vez disso, criou um espaço onde encara de frente tudo o que o atravessou durante o processo de amadurecimento: o vício em cigarros, os erros em antigos relacionamentos, a autodestruição e a constante insatisfação com o futuro. Para ele, essa foi a maneira mais honesta de se comunicar com o mundo, não para provocar pena, mas para ser compreendido. E é justamente na agressividade de suas palavras que ele encontra um canal de expressão genuína, capaz de revelar, com crueza, quem ele realmente é.
“Eu tô fumando muito, sempre, o tempo todo
Não ligando pra saúde, me imaginando morto
Me imaginando igual os aviso de cigarro
Que ninguém liga porque fumar é bom pra caralho
[..]
Eu tô tipo um bobo da corte
Faço eles rir pra mais tarde eu chorar”
“Tipo, não é que eu acho diretamente que fumar é bom para caralho, tá ligado?[...] é bom? Não é bom, tá ligado? Mas eu estou registrando ali um erro meu também”
O EP contém as músicas mais marcantes para os fãs do rapper, e foi fundamental para definição de seu próximo passo dentro do cenário, iniciado ainda em Kalledy na música “Nunca mais vou ser clt”, e que agora visita as dores de trabalhar e ter uma vida adulta.
A amargura da vida adulta: HKPM
No ano seguinte, começo de 2025, Link lançou seu novo álbum, que manteve o embalo do sucesso de “A Última Dança” e que já ultrapassa a marca de 3 milhões de reproduções nas plataformas digitais. Visual e tematicamente, o projeto “Histórias de Kebrada para Pessoas Malcriadas” se apresenta como uma continuação direta do EP Kalledy, expandindo o universo sombrio e introspectivo que o artista havia iniciado. Em entrevista ao canal DE BOCA CHEIA, Link revelou que o EP Kalledy, o single “Eu Posso Ser Deus” e o novo álbum (apelidado de HKPM) compõem uma trilogia autorreferencial.
Segundo o próprio rapper, esses três trabalhos representam diferentes estágios de sua jornada pessoal e emocional. Em Kalledy, ele retrata a dor de um jovem afundado em autodepreciação e confusão. Já em HKPM, Link continua cantando sobre si mesmo, mas agora sob uma nova ótica ao chegar na vida adulta, se antes ele se odiava, agora ele se odeia e odeia o mundo ao seu redor. As capas contrastam entre si, tanto pela pose feita por Kalledy quanto pelo excesso de saturação de cores em uma e ausência de cor em outra, nos clipes de “Kalledy” ele utiliza uma máscara de Wrestling, já em “Histórias de Kebrada” ele utiliza gazes em seu rosto, que tampas as feridas
“Mais uma outra jornada, de novo o louco viaja
O mundo testando a minha fé, eu ando nas ruas lotadas de lixo
Acordo e vejo um esgoto na frente da minha casa
Às vezes eu penso que nós vive pior que bicho”
Letra de “A Procura de Soldados”
HKPM consolidou o sucesso na carreira de Link do Zap, que anunciou uma turnê junto ao lançamento do álbum. O evento organizado pela Lóbulo está atualmente passando por 12 cidades e esgotou ingressos na grande maioria delas antes mesmo das músicas serem lançadas.
Nesse estágio de sua vida, a revolta com o mundo e com a coletividade passa a ocupar o centro de sua obra. A pobreza material, e todas as ausências que ela impõe, torna-se um eixo narrativo constante, atravessando as letras como uma ferida aberta. O ato de trabalhar, longe de ser exaltado, é tratado como uma dor inevitável, uma imposição cruel de um sistema que transforma a sobrevivência em castigo. O próprio autor afirma que:
“Você pula de ação de infância para uma vida adulta agora e com envolvimento muito do trabalho, né? Eu acho que é uma parada que tipo, a nossa vida roda muito em torno dessa coisa. Tipo, independente da sua profissão, independente do que você é, do seu gênero, no fim do mês tem que pagar as suas contas”
“Um dia eu fui num médico que, desacreditado
Perguntou qual o meu problema, eu disse: ‘Doutor, tá tudo errado’
Disse que nada fazia sentido e que cada dia eu tava mais bolado
Mais revoltado em um mundo zoado
E aquele cara, que tinha doutorado, olhou pra minha cara
Viu que era sintoma de injustiça e deu um dia de atestado”
Letra de “pomba da paz”
O sofrimento com o dinheiro sempre esteve presente em sua obra, ainda que de forma pontual em músicas anteriores, nas quais Link relembra fases da vida em que enfrentava a fome e celebra o fato de não passar mais por isso. Embora haja uma mudança temática mais recente, a agressividade característica de sua lírica permanece intacta. A diferença é que, desta vez, ela não se volta apenas contra si mesmo,ela mira um alvo claro: as pessoas ricas.
“Eu me banharia no seu sangue, socando a sua cara
Os guardas reais tão do seu lado, eu tenho do meu lado a minha quebrada
No fim, iam me encher de bala
Minha roupa favorita, toda furada”
Letra de “dando um jeito”
Porém, a agressividade e o ódio não são os únicos sentimentos que permeiam as músicas de Link. No final do álbum, a letra traz uma mensagem de esperança — um sonho de coletividade e a crença de que, em algum momento, dias melhores virão. Essa visão contrasta com a dureza explorada até então, como também remete à sua infância.
Ao ser questionado sobre esse sonho, Link respondeu:
“Algo que pudesse ser passado para outras pessoas, uma ideia que pode ser compartilhada, um sonho que pode ser compartilhado. – Qual o sonho? – Cara, o sonho de ter um mundo melhor, tá ligado? É meio aberto assim, é meio bobo, tá ligado?…Bobo, mas sincero, né? Bobo, mas sincero.”
Os lançamentos mais recentes de Link do Zap representam a trajetória de um artista em constante movimento, que descobre o potencial de sua arte ao mesmo tempo em que a expande a cada novo trabalho com empolgação nos olhos. O que começou como um impulso para falar sobre si mesmo evoluiu para um diálogo mais amplo sobre sua posição no mundo, sem jamais perder de vista sua identidade e suas origens.
Seus próximos passos despertam não apenas a curiosidade sobre o que será dito em suas músicas, mas também sobre como essas mensagens serão expressas.
Para o futuro, há duas respostas distintas, uma para Link e outra para Kalledy.
“Do Link: Vai sair ainda algumas coisas, é mais feat mesmo, tá ligado, mano? Que eu gravei, aí já tinha agendado já um monte, então vai sair bastante feat esse ano. E, cara, tipo assim, de Kalledy eu quero descansar mesmo, tá ligado? Eu acho que esse álbum, ele me tomou muito tempo assim, mano, muita cabeça, todo o projeto me toma muita saúde mental.”
Editoria: Maria Eduarda Collares
Revisão: Gabriel Barcelos
Foto da Capa: @aphrodiphoto no Instagram